Na coluna publicada pelo escritor, roteirista e dramaturgo Walcyr Carrasco na última edição da revista Veja, um cenário perturbador salta aos olhos: a transformação da amizade em negócio de ocasião, onde o afeto cede lugar à conveniência e à manipulação emocional. A prática do calote entre amigos, retratada como frequente, deixa de ser exceção e passa a ser retrato fiel de uma sociedade onde a palavra já não vale nada. Trata-se de um fenômeno corrosivo que mina as bases da convivência civilizada.
Em vez de vínculos construídos na confiança e no respeito mútuo, o que se vê é o oportunismo sendo alimentado por uma cultura de impunidade social. Quem pede dinheiro emprestado hoje, amanhã some como se a dívida fosse um detalhe irrelevante. A crônica expõe que calotear deixou de ser vergonha para virar estratégia de vida, revelando uma distorção ética grave.
O mais alarmante é a tolerância da sociedade diante desse comportamento. O "nome sujo" já não gera o constrangimento de outrora, e os caloteiros parecem multiplicar-se como se tivessem um salvo-conduto moral. Muitos deles são reincidentes, abusam da boa-fé alheia e seguem impunes, enquanto suas vítimas amargam prejuízos, solidão e descrença no outro.
A era digital piorou o cenário. Com um clique, surgem campanhas fraudulentas, pedidos de doação e empréstimos que nunca serão pagos. Trata-se de um parasitismo social virtualmente aceito. E pior: muitas vítimas, envergonhadas ou emocionalmente envolvidas, nem denunciam. Estamos diante de uma falência ética generalizada que deveria ser discutida com urgência nas escolas, na mídia e no espaço público.
Em uma sociedade minimamente decente, o calote seria tratado como ato de desonra, e não como artimanha do esperto. A leniência diante dessa conduta não apenas destrói amizades, mas agrava a desigualdade e reforça a cultura do "levar vantagem". Quem perde o dinheiro e o amigo ainda é ridicularizado. Um país que aceita isso de forma naturalizada precisa, urgentemente, reaprender o significado de respeito, responsabilidade e vergonha na cara.
Fonte: Revista Veja