O terceiro trimestre de 2024, que inclui a reta final das pré-campanhas e a maior parte do período eleitoral das disputas municipais, registrou 323 casos de violĂȘncia contra figuras da política brasileira. É o trimestre mais violento dos últimos cinco anos, segundo levantamento do Observatório de ViolĂȘncia Política e Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
O estudo, cuja série histórica começou em 2019, revela uma escalada no número de casos em eleições municipais e indica como desafio urgente para a democracia do país, segundo analistas ouvidos pelo Estadão, o resgate da civilidade e do espírito republicano na disputa eleitoral.
Os números de julho, agosto e setembro superam os últimos trĂȘs meses de 2020 - que incluem o período eleitoral daquele ano, quando os pesquisadores catalogaram 236 casos. Neste ano, foram 242 considerando as mesmas categorias de pesquisa: violĂȘncia física e psicológica. Os outros 81 casos foram tipificados como violĂȘncia de natureza semiótica (como desqualificação e objetificação), econômica (roubo ou vandalismo) e sexual (assédio, importunação e ameaça de estupro), novas categorias no estudo. Com os dados deste último trimestre, 2024 chega à marca de 510 casos de violĂȘncia política em todo o País. "O aumento da violĂȘncia na época de eleição era um dado esperado, mas acabamos batendo recordes que assinalam o agravamento deste cenĂĄrio", disse Miguel Carnevale, pesquisador do observatório.
Enquanto episódios que vão de soco a cadeirada aconteciam em frente às câmeras na corrida pela Prefeitura de São Paulo, casos no interior faziam o Estado chegar à soma de 58 ocorrĂȘncias de violĂȘncia política nos últimos trĂȘs meses, incluindo 21 agressões físicas e trĂȘs homicídios: foram mortos um vereador em Sandovalina, um ex-vereador em São Vicente e um candidato a vereador em Santo André. Logo atrĂĄs de São Paulo, o Estado do Rio de Janeiro foi o que mais registrou casos, com 42. Depois, CearĂĄ, com 23; Bahia, com 22; e Paraíba, com 21.
'MUITO MEDO'. O tipo de violĂȘncia com maior número de ocorrĂȘncias no levantamento é ameaça. Foram 80 de julho a setembro. "A gente se sente constrangido, humilhado, e (esse tipo de situação) gera muito medo, muito medo mesmo", afirmou o candidato a prefeito Alysson da Saúde (PT), de Campo Florido (MG), que tenta a reeleição.
Ele relatou à Polícia Federal e à Justiça Eleitoral em agosto duas ameaças que sua chapa recebeu por WhatsApp durante o período de campanha. Números não identificados exigiam o afastamento dele e de seu candidato a vice, Thales de Santi, da política. "Sai fora da política, depois não vai chorar o leite derramado", dizia uma delas. A PF colhe depoimentos a respeito das ameaças.
A 370 km dali, em Carmo do Rio Branco (MG), o prefeito Filipe Carielo (PSD), que tenta a reeleição, relatou ter sido ameaçado com um facão no mĂȘs passado por um funcionĂĄrio da prefeitura insatisfeito com uma transferĂȘncia de setor. O homem o acuou dentro de um bar, fazendo o candidato se esconder dentro do banheiro. A Polícia Civil de Minas Gerais informou que investiga o caso. "Pessoas sem equilíbrio acabam partindo para a agressão, o que é inadmissível. É importante para a democracia que ela seja livre de violĂȘncia", disse Carielo.
Agressões físicas também estão no topo da lista de principais episódios de violĂȘncia política, com 79 casos identificados. Em setembro, por exemplo, dois vereadores de grupos políticos adversĂĄrios em São João do Arraial (PI), Cajé Rocha (MDB) e Jurandir Pontes (PT), trocaram socos no plenĂĄrio da Câmara Municipal. No mesmo mĂȘs, em Sobral (CE), o ex-prefeito Veveu Arruda se envolveu em briga com moradores durante ato eleitoral de sua mulher, Izolda Cela (PSB), candidata à prefeitura. Os dois casos foram filmados e viralizaram em redes sociais.
PARTIDOS. Atentado, desqualificação e HOMICÍDIO fecham a lista de tipos de violĂȘncia política com maior número de ocorrĂȘncias neste trimestre. A Unirio mostra que a violĂȘncia política atinge quase todos os partidos. Filiados de 25 das 29 siglas brasileiras estão entre as vítimas no período. Petistas aparecem em 38 ocorrĂȘncias; MDB e União Brasil tĂȘm 36 cada; PL, com 33; e PSD, com 23, vĂȘm em seguida.
Autoridades reagiram à escalada de episódios preocupantes no País. A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra CĂĄrmen Lúcia, anunciou no último domingo a criação de um Observatório Permanente Contra a ViolĂȘncia Política para averiguar, relatar e estabelecer bases para o combate de casos do tipo.
"A política existe para que os conflitos sejam resolvidos pelo diĂĄlogo, dentro das instituições e à luz da lei. A violĂȘncia é a negação da política e dos princípios da civilidade", afirmou o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Parte da responsabilidade vem da violĂȘncia retórica. Em contextos políticos polarizados, temos uma visão de que um adversĂĄrio não é visto como um adversĂĄrio, mas, sim, um inimigo a ser eliminado."
Segundo Carnevale, o "ponto de partida para a resolução é retomar o debate cívico e fortalecer a presença institucional". "Tivemos avanços, como leis para combater violĂȘncia de gĂȘnero, criação de monitoramentos e trabalhos de combate à violĂȘncia. Sem centralizar o debate sobre a questão no ambiente político, o problema tende a se cristalizar".
Matheus Lara - J. Estadão (Folha de SP) - 04/10/2024.